CRÔNICA DOS PÉS DIREITOS
Para a amiga Helenita
Beserra, que me apresentou um poema e para todos os meus alunos do Colégio
Estadual Guadalajara, de Duque de Caxias!
Que
a palavra tem força, eu nunca duvidei. Jamais tive dúvidas acerca do poder da
literatura, da arte como elemento renovador, transformador. Arte toca nas fendas
mais profundas, arte entra pelas crateras das chagas e atinge rapidamente a
corrente sanguínea passando pelo coração, cérebro e todo o corpo. Em algum momento
ela chega à mente. A palavra também faz esses percursos. De tanto que se fala
sobre algo, algo em que se acredita, esse algo vai virando verdade e se
tornando vida real e concreta.
Falar
disso tudo é coisa muito diferente de viver isso tudo. E comecei a ter essas
vivências logo que uma amiga me apresentou um poema de Manoel de Barros
que fala sobre a importância das coisas. O poema indagava: “o que seria mais
importante para o cachorro? Um osso ou um diamante?”.
E após a apresentação do poema, a frase
contundente: só nos relacionamos intimamente e com zelo, e com afeto, e com
ternura com aquilo que nos é caro, importante. Importante! Essa é uma palavra
que se repetia no poema do Manoel de Barros.
No
dia seguinte, modifiquei tudo o que eu faria com meus alunos em sala de aula.
Abandonei as orações coordenadas, a estrutura da narrativa e passei o poema no
quadro. Prevendo que os jovens reclamariam, fui logo avisando: “hoje vocês vão
copiar apenas esse poema. Depois vamos dialogar. Cadernos, canetas, borrachas,
lápis... tudo será devidamente guardado nas mochilas e vamos dissecar esse
poema. Torná-lo vivo!” Entender algo, para mim, é dar vida!
E assim foi. Os alunos
copiaram. Na sequência, sentaram-se em um semicírculo e me olharam com olhos
hesitantes, tentando adivinhar o que eu pediria que fizessem. Eles temem as
surpresas dos mestres. Ficam tensos. Trata-se daquela tensão que o aluno sente
quando não sabe o perigo iminente que pode surgir da fala do professor, tão
dono e cheio de si, tão e todo poderoso na regência da turma. E eu comecei a
minha tagarelice. Falei da importância das coisas. Falei do zelo, das
lembranças, das pessoas que amamos, das coisas que desejamos, de como cuidamos
daquilo que valorizamos e de como tentamos proteger as pessoas que queremos
bem.
Olhei para as carteiras
rabiscadas e, pensando no fotógrafo-artista do poema de Manoel de Barros,
mostrei aos alunos que poderíamos simplesmente fotografar uma carteira
rabiscada, ou poderíamos ver importância nela. Podíamos ajustar as lentes para
olhar para essa carteira, trocar o filtro, colocar mais ou menos cor,
dependendo da medida da importância que a mesma tem para nós. Não foi preciso
falar muito até que alguém disse, no fundo da sala: “rabiscamos a carteira
porque ela não é importante para nós. É isso que o senhor quer ouvir, não é?”.
Acho que no fundo sim,
era o que eu queria ouvir. Mas não apenas isso! Eu queria que os alunos compreendessem
o que deveria ser a sala de aula para eles. Que não fosse a prisão que muitos
desenhavam, nem a droga de sala de aula, repleta de drogas de paredes, cercada
por outras drogas de corredores, drogas de salas, drogas de escadas... drogas
de professores...
A tagarelice continuou.
Evoquei minhas memórias de estudante. E escovei a contra pelo minha história, à
Walter Benjamin, e disse aos alunos que um dia fui como eles. Que ainda que
meus pais avisassem, eu não conseguia entender o porquê de a escola ser tão
importante. Lembrei-me de um professor que me perguntou o que eu queria ser na
vida. E eu não sabia o que eu queria ser na vida, todavia eu sabia o que queria
ter na vida! Porém, o ter na vida dependeria do ser na vida! E nesse jogo de
palavras, de ideias e de memórias, nessa angústia barroca, reconstruí minha
história e revisitei o dia em que, após ter concluído o ensino médio, fui ao
meu colégio buscar meu histórico escolar.
Lembrei-me de ter saído
da secretaria feliz com o papel na mão. Aquele papel que comprovava que eu
terminara o ensino médio e que estava apto a ir além – fazer uma faculdade, ou
enfrentar o mundo do trabalho. Rememorei a saída da secretaria rumo ao portão. Olhei
para trás e senti um vazio. Aquele papel que eu carregava nas mãos era a
tesoura que cortava, naquele momento, meu cordão umbilical, meu elo com a
placenta-escola. E à medida em que eu me aproximava do portão, um nó na
garganta se mostrava vivo.
Eu não ouviria mais o
sino, não ouviria as vozes, não sentiria o cheiro da merenda, não pisaria de
novo, como aluno, aquele chão. Não teria mais aquela rotina... Como me faria
falta aquela rotina!
Ao sair da escola,
naquele dia, vi a vastidão do mundo, tal qual o bebê que acaba de nascer e que
vê a luz pela primeira vez, que sorve o ar, que se incomoda com os ruídos, que
se sente perdido. Eu não sabia para onde fugir e me bateu um desejo enorme de
voltar para a escola, de bater com as duas mãos naquele portão e pedir socorro:
“abram, por favor, preciso voltar. Não estou preparado para sair. Há muitas
coisas que não aprendi! É mais confortável aí dentro. Como vou seguir sozinho?”
E então, ouvi a voz do portão: “seu ciclo aqui se fechou! Agora siga!”.
De volta ao presente e
ao prazer da leitura de Manoel de Barros, percebi-me em sala de aula com alunos
diante de mim em um silêncio profundo, mas contemplativo, aquele silêncio que
atordoa de tanto barulho que faz. Voltei os olhos lacrimejantes para meus
alunos que me ouviam com muita atenção, momento raro. E eu disse a eles: “ao
sair daquele portão azul – víamos o portão pelas janelas do segundo andar do
prédio da escola – vocês estarão caminhando para a realização dos sonhos. É bom
entender que essa realização já começou. Vocês saem daqui, hoje, diferentes de
ontem, diferentes do minuto anterior àquele em que pronunciei a palavra
“anterior”. Quando saírem daqui, hoje, deem, lá no portão azul, o primeiro
passo rumo à mudança de vida”.
Era meio-dia e encerrei
a aula. Eles saíram apertando minha mão, com um brilho diferente no rosto. Como
eram carentes de palavras! Eu senti que o poema do Manoel de Barros que a mim
havia tocado, tocara também suas almas. A última frase do dia: “sua aula foi
boa, professor!” E aquela simples frase, pronunciada por jovens de corações
feridos pelas agruras da vida soaram como um “hoje fomos amados”! Eu me senti orgulhoso! Enchi meu coração de
alegria, paz e esperança. Os alunos saíram, a sala de aula ficou silenciosa,
vazia e empobrecida. Apaguei com dor na alma o poema, tão lindo, que estava
escrito no quadro e fui guardar meus pertences na bolsa.
Despretensiosamente, ou
instintivamente, ou por um empurrão divino, não sei, dei a última olhadela nos
alunos que naquele dia tocaram meu coração de um modo ímpar. Lancei, da vidraça
quebrada, os olhos no portão azul, lá embaixo. Vi que havia uma lentidão na
saída. Aquilo não era usual, uma vez que ir embora era um desejo dos jovens. Havia
uma pequena fila. Isso se devia ao tipo de passo que era dado por eles. Um a
um, e comentando um com o outro sobre o que faziam naquele momento, eles
colocavam para fora da escola, através do portão-portal azul, os pés direitos
rumo à realização dos sonhos. Timidamente sorri, não acreditando na cena que
via. Torci para que eles olhassem para a janela e me vissem a contemplá-los. O
coração bateu mais forte, senti bater na garganta! Nenhum deles olhou para
cima. Nenhum deles acenou, nem disse: “viu professor, a gente saiu com o pé
direito”! Não precisava! Eu já me sentia realizado. Não deram aqueles passos
para mim, mas para eles, como guinada para suas vidas tão plenas de dificuldades.
Fizeram por eles. Deram o primeiro passo rumo à vastidão do mundo. Que sejam
felizes!
Naquele dia de maio,
mais que em outros, a poesia valera a pena!
Desejoso de fazer
versos...
Rio
de Janeiro, 29 de maio de 2015.