sábado, 30 de maio de 2015

HOMENAGEM A MANOEL DE BARROS


CRÔNICA DOS PÉS DIREITOS


Wagner Teixeira Dias

Para a amiga Helenita Beserra, que me apresentou um poema e para todos os meus alunos do Colégio Estadual Guadalajara, de Duque de Caxias!

         Que a palavra tem força, eu nunca duvidei. Jamais tive dúvidas acerca do poder da literatura, da arte como elemento renovador, transformador. Arte toca nas fendas mais profundas, arte entra pelas crateras das chagas e atinge rapidamente a corrente sanguínea passando pelo coração, cérebro e todo o corpo. Em algum momento ela chega à mente. A palavra também faz esses percursos. De tanto que se fala sobre algo, algo em que se acredita, esse algo vai virando verdade e se tornando vida real e concreta.
         Falar disso tudo é coisa muito diferente de viver isso tudo. E comecei a ter essas vivências logo que uma amiga me apresentou um poema de Manoel de Barros[1] que fala sobre a importância das coisas. O poema indagava: “o que seria mais importante para o cachorro? Um osso ou um diamante?”.
 E após a apresentação do poema, a frase contundente: só nos relacionamos intimamente e com zelo, e com afeto, e com ternura com aquilo que nos é caro, importante. Importante! Essa é uma palavra que se repetia no poema do Manoel de Barros.
         No dia seguinte, modifiquei tudo o que eu faria com meus alunos em sala de aula. Abandonei as orações coordenadas, a estrutura da narrativa e passei o poema no quadro. Prevendo que os jovens reclamariam, fui logo avisando: “hoje vocês vão copiar apenas esse poema. Depois vamos dialogar. Cadernos, canetas, borrachas, lápis... tudo será devidamente guardado nas mochilas e vamos dissecar esse poema. Torná-lo vivo!” Entender algo, para mim, é dar vida!
E assim foi. Os alunos copiaram. Na sequência, sentaram-se em um semicírculo e me olharam com olhos hesitantes, tentando adivinhar o que eu pediria que fizessem. Eles temem as surpresas dos mestres. Ficam tensos. Trata-se daquela tensão que o aluno sente quando não sabe o perigo iminente que pode surgir da fala do professor, tão dono e cheio de si, tão e todo poderoso na regência da turma. E eu comecei a minha tagarelice. Falei da importância das coisas. Falei do zelo, das lembranças, das pessoas que amamos, das coisas que desejamos, de como cuidamos daquilo que valorizamos e de como tentamos proteger as pessoas que queremos bem.
Olhei para as carteiras rabiscadas e, pensando no fotógrafo-artista do poema de Manoel de Barros, mostrei aos alunos que poderíamos simplesmente fotografar uma carteira rabiscada, ou poderíamos ver importância nela. Podíamos ajustar as lentes para olhar para essa carteira, trocar o filtro, colocar mais ou menos cor, dependendo da medida da importância que a mesma tem para nós. Não foi preciso falar muito até que alguém disse, no fundo da sala: “rabiscamos a carteira porque ela não é importante para nós. É isso que o senhor quer ouvir, não é?”.
Acho que no fundo sim, era o que eu queria ouvir. Mas não apenas isso! Eu queria que os alunos compreendessem o que deveria ser a sala de aula para eles. Que não fosse a prisão que muitos desenhavam, nem a droga de sala de aula, repleta de drogas de paredes, cercada por outras drogas de corredores, drogas de salas, drogas de escadas... drogas de professores...
A tagarelice continuou. Evoquei minhas memórias de estudante. E escovei a contra pelo minha história, à Walter Benjamin, e disse aos alunos que um dia fui como eles. Que ainda que meus pais avisassem, eu não conseguia entender o porquê de a escola ser tão importante. Lembrei-me de um professor que me perguntou o que eu queria ser na vida. E eu não sabia o que eu queria ser na vida, todavia eu sabia o que queria ter na vida! Porém, o ter na vida dependeria do ser na vida! E nesse jogo de palavras, de ideias e de memórias, nessa angústia barroca, reconstruí minha história e revisitei o dia em que, após ter concluído o ensino médio, fui ao meu colégio buscar meu histórico escolar.
Lembrei-me de ter saído da secretaria feliz com o papel na mão. Aquele papel que comprovava que eu terminara o ensino médio e que estava apto a ir além – fazer uma faculdade, ou enfrentar o mundo do trabalho. Rememorei a saída da secretaria rumo ao portão. Olhei para trás e senti um vazio. Aquele papel que eu carregava nas mãos era a tesoura que cortava, naquele momento, meu cordão umbilical, meu elo com a placenta-escola. E à medida em que eu me aproximava do portão, um nó na garganta se mostrava vivo.
Eu não ouviria mais o sino, não ouviria as vozes, não sentiria o cheiro da merenda, não pisaria de novo, como aluno, aquele chão. Não teria mais aquela rotina... Como me faria falta aquela rotina!
Ao sair da escola, naquele dia, vi a vastidão do mundo, tal qual o bebê que acaba de nascer e que vê a luz pela primeira vez, que sorve o ar, que se incomoda com os ruídos, que se sente perdido. Eu não sabia para onde fugir e me bateu um desejo enorme de voltar para a escola, de bater com as duas mãos naquele portão e pedir socorro: “abram, por favor, preciso voltar. Não estou preparado para sair. Há muitas coisas que não aprendi! É mais confortável aí dentro. Como vou seguir sozinho?” E então, ouvi a voz do portão: “seu ciclo aqui se fechou! Agora siga!”.
E segui...
De volta ao presente e ao prazer da leitura de Manoel de Barros, percebi-me em sala de aula com alunos diante de mim em um silêncio profundo, mas contemplativo, aquele silêncio que atordoa de tanto barulho que faz. Voltei os olhos lacrimejantes para meus alunos que me ouviam com muita atenção, momento raro. E eu disse a eles: “ao sair daquele portão azul – víamos o portão pelas janelas do segundo andar do prédio da escola – vocês estarão caminhando para a realização dos sonhos. É bom entender que essa realização já começou. Vocês saem daqui, hoje, diferentes de ontem, diferentes do minuto anterior àquele em que pronunciei a palavra “anterior”. Quando saírem daqui, hoje, deem, lá no portão azul, o primeiro passo rumo à mudança de vida”.
Era meio-dia e encerrei a aula. Eles saíram apertando minha mão, com um brilho diferente no rosto. Como eram carentes de palavras! Eu senti que o poema do Manoel de Barros que a mim havia tocado, tocara também suas almas. A última frase do dia: “sua aula foi boa, professor!” E aquela simples frase, pronunciada por jovens de corações feridos pelas agruras da vida soaram como um “hoje fomos amados”! Eu me senti orgulhoso! Enchi meu coração de alegria, paz e esperança. Os alunos saíram, a sala de aula ficou silenciosa, vazia e empobrecida. Apaguei com dor na alma o poema, tão lindo, que estava escrito no quadro e fui guardar meus pertences na bolsa.
Despretensiosamente, ou instintivamente, ou por um empurrão divino, não sei, dei a última olhadela nos alunos que naquele dia tocaram meu coração de um modo ímpar. Lancei, da vidraça quebrada, os olhos no portão azul, lá embaixo. Vi que havia uma lentidão na saída. Aquilo não era usual, uma vez que ir embora era um desejo dos jovens. Havia uma pequena fila. Isso se devia ao tipo de passo que era dado por eles. Um a um, e comentando um com o outro sobre o que faziam naquele momento, eles colocavam para fora da escola, através do portão-portal azul, os pés direitos rumo à realização dos sonhos. Timidamente sorri, não acreditando na cena que via. Torci para que eles olhassem para a janela e me vissem a contemplá-los. O coração bateu mais forte, senti bater na garganta! Nenhum deles olhou para cima. Nenhum deles acenou, nem disse: “viu professor, a gente saiu com o pé direito”! Não precisava! Eu já me sentia realizado. Não deram aqueles passos para mim, mas para eles, como guinada para suas vidas tão plenas de dificuldades. Fizeram por eles. Deram o primeiro passo rumo à vastidão do mundo. Que sejam felizes!
Naquele dia de maio, mais que em outros, a poesia valera a pena!
E segui...
Desejoso de fazer versos...


Rio de Janeiro, 29 de maio de 2015.



[1] O poema aqui citado chama-se Sobre Importâncias
Fonte da foto da postagem: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/ (acesso em 30 de maio de 2015)

3 comentários:

  1. Sinto o poder das palavras. Nesse momento as lágrimas ficam a vontade pra molhar o teclado. É a emoção que as palavras evocam . Estou exatamente na saída do portão azul... Com minha aposentadoria nos dois cargos um desejo enorme de esmurrar o portão de gritar que ainda não dei tudo de mim que preciso de um tempo maior que preciso voltar e ensinar tudo de novo. Sigo assim mesmo tantos seguem...Belíssimo texto amigo... Ah meus passos também saem lentos...

    30 de maio de 2015 18:07

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  2. Que lindo! :-) Sempre teremos portões a cruzar! Talvez tenhamos sempre a sensação de incompletude, mas assim é a vida! Quando damos o melhor de nós, podemos, mesmo com lágrimas nos olhos, seguir em frente, mesmo que com passos lentos... um legado de humanidade sempre fica. Vidas foram construídas, sonhos...esperanças... histórias, tantas... memórias... Mas novos sonhos virão, novos rumos, novas metas. Escreva tudo! Sei que as palavras são vida também para você! Continue, sempre, e por muitos anos, plantando suas sementes de ternura e alegria no mundo! obrigado por ler meu texto! Um abraço meu, repleto de carinho!

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  3. Prezado Wagner =) que maravilhosa experiência contada neste lindo testemunho do professor engajado que você é. Inspirou-me num momento tão necessário quando me pergunto como posso deixar minhas aulas mais significativas.

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