O outro lado
Wagner Dias
Aos que correm, atenção: correr é uma tentativa desvairada de unir o ponto um ao ponto dois. Ato de quem tem pressa ou de quem se acostumou a querer ganhar tempo. Trata-se da infame competição em que os atletas se resumem a eles próprios. Trovões em busca de vida. Que vida? Não se espera o sinal, ignora-se o risco do tráfego e as milhões de cenas cotidianas cujo o palco é o paralelepípedo. Toda essa pressa para quê? Antecipar dois, três segundos? Vale realmente a pena?
De um ao outro lado da rua. "É preciso atravessar", ele pensa. "E depressa", ele decide. Os olhos voam da direita à esquerda e um ímpeto indecente o faz avançar. Começa a competição! As pernas passam a ter vida própria. E corre, e voa... Nesse voar desenfreado, deixou de ver as lágrimas de uma transeunte, passou sem notar aquele doce sorriso de criança que o mirou, não ouviu o bom dia ofertado pela vizinha. Sequer viu a vizinha. Só sentia o vento no rosto, o coração agitado, o barulho oco dos calçados tocando o chão. Sequer observou o pavimento. Não viu a moeda perdida, pisou no estrume de cachorro, não se desviou da poça d'água. Corria. Eterno e angustiante aquele momento que não se findava. Precisava ganhar a corrida contra si mesmo. Não tinha hora marcada, não estava doente, não precisava usar o banheiro... não precisava ter pressa. Não se deu conta.
Quatro segundos seria o tempo de travessia. Sem correr faria o trajeto em oito, nove, dez segundos. Não pensava em nada. Queria chegar do outro lado da rua, simplesmente por chegar. Para dizer a si mesmo que havia vencido seus próprios limites. Atleta da ignorância.
Deu-se, então, o fatídico inesperado. Torceu o tornozelo e sentiu uma dor excruciante. Tombou! Um segundo de queda. Um segundo perdido daquela maratona. Viu-se gigante abatido a apenas cinquenta centímetros do seu objetivo: o outro lado da rua. Apoiou as mão no solo no instintivo gesto de proteger o rosto e evitar bater a cabeça. Sentiu a temperatura do chão. Pela primeira vez o tocara com as mãos. Uma percepção surpreendente. Nunca sentira nos pés, protegidos por solas grossas, o calor daquele pavimento.
Havia algo grudado na palma de sua mão. Tentou se livrar daquele papel sujo e viu que havia, ali, palavras registradas: "Filho, mamãe te ama. Tem arroz e feijão na geladeira. Você frita um ovo? Vou comprar carne pra janta. Fique com Deus!" Provavelmente aquele era um bilhete de uma mãe trabalhadora, uma operária, diarista, ambulante, professora... uma mulher simples, mas mãe amorosa. Sentiu o amor. Pensou nos bilhetes que poderia ter escrito aos filhos, que mal viu crescer. Hoje, adolescentes. Pensou nas palavras de amor que deixou de dizer, nos possíveis dramas, nas alegrias, nas descobertas dos filhos das quais jamais soube. Em dez segundos, ele leu aquela mensagem de amor. Recebeu para si aquele "mamãe te ama". Não visitava a própria mãe há tempos. Não se importava em telefonar. Pagava a acompanhante e acreditava que tudo estava bem. Não pensou no afeto perdido, nos anos passados, na presença, no abraço.
Alguém estende as mãos. Um jovem. Poderia ser seu filho. Mãos macias. Lembrou-se de como eram suas próprias mãos quando era jovem, de quantos brinquedos construiu, de quantos desenhos elaborou na calma serena em busca do melhor traço, das melhores cores... Desejava ser engenheiro. E conseguiu! Formou-se e correu a vida toda. Esqueceu de contemplar o mundo. Com um sorriso no rosto, aceitou a ajuda do jovem. Apoiou o joelho para se erguer. Desequilibrou-se devido à dor que persistia. Mancando, chegou ao seu destino. Agradeceu àquele jovem.
Já sentado, no primeiro banco que encontrou, mexeu o pé para um lado, para o outro, na tentativa de colocar, ele mesmo, as articulações no lugar. Percebeu que haviam sido modificadas as imagens do chão da praça, construídas com pedras portuguesas. Era um bonito dia de verão. Havia crianças brincando, acompanhadas por suas babás. Flores! Flores no canteiro central. E tinham um perfume jamais imaginado. Apoiou-se no encosto do banco. Repousou a cabeça. Fechou os olhos. Deixou o calor do sol aquecer toda a musculatura da face. Ouviu Mozart, a mesma melodia que a avó tocava quando era criança. Som melodioso e terno que vinha da loja de discos da esquina. Sentiu cheiro de pipoca e de milho cozido. Iguarias que não degustava há anos. Ouviu a conversa de jovens senhoras que passavam com suas sacolas de compras e reclamavam do preço do tomate.
Ali, sentado, observando a orquestra movimentada de uma rua de uma grande cidade, pensou no preço da própria vida. Rememorou o momento da travessia, tentou visualizar o percurso realizado, imaginando em detalhes todos os riscos que correra. Poderia ter sido atropelado ou, quem sabe, batido a cabeça. Poderia ter se ferido gravemente, perdido a memória. E quem seria ele sem memória? De que adiantaria ter chegado do outro lado se não saberia para onde ir? Tudo por causa de míseros segundos. Com a dor amenizada, levantou-se. Comprou um sorvete. Observou a delicadeza dos pombos catando migalhas. Olhou, verdadeiramente, para dentro de si mesmo. Enfim, compreendeu que a distância entre duas calçadas é pequena demais para o tamanho da pressa. Entendeu que há um universo de vida nos paralelepípedos. Milagrosamente, constatou que não precisava chegar do outro lado da rua, mas, sim, do outro lado de si mesmo.