quinta-feira, 13 de junho de 2019

O OUTRO LADO

O outro lado

Wagner Dias


Aos que correm, atenção: correr é uma tentativa desvairada de unir o ponto um ao ponto dois. Ato de quem tem pressa ou de quem se acostumou a querer ganhar tempo. Trata-se da infame competição em que os atletas se resumem a eles próprios. Trovões em busca de vida. Que vida? Não se espera o sinal, ignora-se o risco do tráfego e as milhões de cenas cotidianas cujo o palco é o paralelepípedo. Toda essa pressa para quê? Antecipar dois, três segundos? Vale realmente a pena?

De um ao outro lado da rua. "É preciso atravessar", ele pensa. "E depressa", ele decide. Os olhos voam da direita à esquerda e um ímpeto indecente o faz avançar. Começa a competição! As pernas passam a ter vida própria. E corre, e voa... Nesse voar desenfreado, deixou de ver as lágrimas de uma transeunte, passou sem notar aquele doce sorriso de criança que o mirou, não ouviu o bom dia ofertado pela vizinha. Sequer viu a vizinha. Só sentia o vento no rosto, o coração agitado, o barulho oco dos calçados tocando o chão. Sequer observou o pavimento. Não viu a moeda perdida, pisou no estrume de cachorro, não se desviou da poça d'água. Corria. Eterno e angustiante aquele momento que não se findava. Precisava ganhar a corrida contra si mesmo. Não tinha hora marcada, não estava doente, não precisava usar o banheiro... não precisava ter pressa. Não se deu conta.

Quatro segundos seria o tempo de travessia. Sem correr faria o trajeto em oito, nove, dez segundos. Não pensava em nada. Queria chegar do outro lado da rua, simplesmente por chegar. Para dizer a si mesmo que havia vencido seus próprios limites. Atleta da ignorância.

Deu-se, então, o fatídico inesperado. Torceu o tornozelo e sentiu uma dor excruciante. Tombou! Um segundo de queda. Um segundo perdido daquela maratona. Viu-se gigante abatido a apenas cinquenta centímetros do seu objetivo: o outro lado da rua. Apoiou as mão no solo no instintivo gesto de proteger o rosto e evitar bater a cabeça. Sentiu a temperatura do chão. Pela primeira vez o tocara com as mãos. Uma percepção surpreendente. Nunca sentira nos pés, protegidos por solas grossas, o calor daquele pavimento. 

Havia algo grudado na palma de sua mão. Tentou se livrar daquele papel sujo e viu que havia, ali,  palavras registradas: "Filho, mamãe te ama. Tem arroz e feijão na geladeira. Você frita um ovo? Vou comprar carne pra janta. Fique com Deus!" Provavelmente aquele era um bilhete de uma mãe trabalhadora, uma operária, diarista, ambulante, professora... uma mulher simples, mas mãe amorosa. Sentiu o amor. Pensou nos bilhetes que poderia ter escrito aos filhos, que mal viu crescer. Hoje, adolescentes. Pensou nas palavras de amor que deixou de dizer, nos possíveis dramas, nas alegrias, nas descobertas dos filhos das quais jamais soube. Em dez segundos, ele leu aquela mensagem de amor. Recebeu para si aquele "mamãe te ama". Não visitava a própria mãe há tempos. Não se importava em telefonar. Pagava a acompanhante e acreditava que tudo estava bem. Não pensou no afeto perdido, nos anos passados, na presença, no abraço. 

Alguém estende as mãos. Um jovem. Poderia ser seu filho. Mãos macias. Lembrou-se de como eram suas próprias mãos quando era jovem, de quantos brinquedos construiu, de quantos desenhos elaborou na calma serena em busca do melhor traço, das melhores cores... Desejava ser engenheiro. E conseguiu! Formou-se e correu a vida toda. Esqueceu de contemplar o mundo. Com um sorriso no rosto, aceitou a ajuda do jovem. Apoiou o joelho para se erguer. Desequilibrou-se devido à dor que persistia. Mancando, chegou ao seu destino. Agradeceu àquele jovem.

Já sentado, no primeiro banco que encontrou, mexeu o pé para um lado, para o outro, na tentativa de colocar, ele mesmo, as articulações no lugar. Percebeu que haviam sido modificadas as imagens do chão da praça, construídas com pedras portuguesas. Era um bonito dia de verão. Havia crianças brincando, acompanhadas por suas babás. Flores! Flores no canteiro central. E tinham um perfume jamais imaginado. Apoiou-se no encosto do banco. Repousou a cabeça. Fechou os olhos. Deixou o calor do sol aquecer toda a musculatura da face. Ouviu Mozart, a mesma melodia que a avó tocava quando era criança. Som melodioso e terno que vinha da loja de discos da esquina. Sentiu cheiro de pipoca e de milho cozido. Iguarias que não degustava há anos. Ouviu a conversa de jovens senhoras que passavam com suas sacolas de compras e reclamavam do preço do tomate. 

Ali, sentado, observando a orquestra movimentada de uma rua de uma grande cidade, pensou no preço da própria vida. Rememorou o momento da travessia, tentou visualizar o percurso realizado, imaginando em detalhes todos os riscos que correra. Poderia ter sido atropelado ou, quem sabe, batido a cabeça. Poderia ter se ferido gravemente, perdido a memória. E quem seria ele sem memória? De que adiantaria ter chegado do outro lado se não saberia para onde ir? Tudo por causa de míseros segundos. Com a dor amenizada, levantou-se. Comprou um sorvete. Observou a delicadeza dos pombos catando migalhas. Olhou, verdadeiramente, para dentro de si mesmo. Enfim, compreendeu que a distância entre duas calçadas é pequena demais para o tamanho da pressa. Entendeu que há um universo de vida nos paralelepípedos. Milagrosamente, constatou que não precisava chegar do outro lado da rua, mas, sim, do outro lado de si mesmo. 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

EU SOU PALAVRA




Eu sou palavra
(Wagner Dias)

Atravessa o portal do tempo.
Reveste-se com retalhos de memórias.
Infância...
Lampejos que mesclam realidade e fantasia.
Conta o que foi? Cria o que conta? Acredita no  que recorda?
É livro vivo de corpo página.
Linhas na face, tinta-sangue, narrativa carne.
Tatuagem indelével, brochura de sonhos. 

Criança que foi, festa solitária!
Bolo de barro, medo de boi.
Lendas ao adormecer.
Contos para amanhecer.
Poesia que rompe a tarde.
Anoitecer é verbo...

Dormiu, embalado por ladainhas,
Recitadas por fadas madrinhas. 
Caiu do galho. É fruto maduro.
Por trás das lentes, os olhos.
Redescobre o mundo. 
Redecora, recria, declama.

Pega a pena. Mergulha no mel.
Adoça, pinta, perfuma, escreve, fabula.
Sussurra para as estrelas: pequenos cristais, miçangas, pontos de luz.
Despede-se da casca velha. 
Dos amigos velhos.
Dos velhos amigos.
Dos cacos de brinquedos.

Onde deixou o cavalinho de borracha? 

Apita o trem.
Dá-se a partida.
Fumaça que volta.
Meus pedaços marcam a estrada que fica...
Fragmentos poéticos que temperam a lembrança...
Mas apodrecem.
São devorados por corvos.
Sobrevivem em mim: narrativa que pesa.
Meu diálogo com o menino.

Memórias me habitam.
Será? Foi? É?
Apenas um tempo...
E entre sujeitos, verbos e objetos,
Curo-me,
Salvo-me,
Eternizo-me.

 - Eu sou palavra!



terça-feira, 11 de junho de 2019

CANTO À SIMPLICIDADE


Canto à simplicidade

(Wagner Dias)

Que não nos faltem as flores...
O sussurro do vento...
O cheiro da terra molhada...

Que não nos falte a sensibilidade!

Que eu entenda o que é a força
Ao ver a formiga, minúscula pulsão de vida, 
A carregar suas folhas:
Luta atroz contra o vento...
Contra os pés humanos...
Contra a força das águas da chuva.

Resiliente...
...é o broto que corta a terra.
Árduo esforço para quebrar as amarras da semente.
Broto sonhador...
...não perde a esperança verde de se tornar flor.

Feliz...
...é aquele que percebe as sutilezas,
que compreende a grandeza do mundo em seus detalhes mais íntimos. 
Se sou feliz? Perguntam-me...

Observo as multicores dos grãos de areia,
Aspiro o aroma das flores,
Atento-me ao som da chuva que lava minha vidraça, meu corpo, minha alma.

Não tenho potes de ouro.
Não compro tudo o que quero.
Não tenho a vida que muitos imaginam e desenham.

Outro é meu tesouro:
Minhas joias são feitas de pedras tranquilas de consciência...
Meus perfumes são compostos de finas fragrâncias de serenidade...
Alimento-me da virtude de viver o momento.

Tomo um gole d'água.
Champagne dos humildes.
Banho-me de luz de sol.
Visto-me com o manto de estrelas
para o espetáculo da corda bamba da incerta vida.

Falo com bichos,
abraço árvores,
ouço crianças!

Eu vejo meu futuro na tela neblinosa
dos olhos dos pintores privilegiados...
...aqueles que amadureceram.

E na loteria da vida,
Apostei nos milagres cotidianos:
pequenas doses de alegria.
Competi com jogadores experientes.
Milhares!
Ganhei o prêmio! 
Tornei-me um milionário. 
Entendi que estou vivo.

sábado, 8 de junho de 2019

TRILOGIA INVOLUNTÁRIA


Estou, há algumas semanas, mergulhado na literatura de Edney Silvestre. Cheguei à produção literária desse autor depois de ouvir comentários infindáveis sobre uma adaptação, para a televisão, de um de seus livros. Teimoso que sou, recusei-me a seguir a onda e decidi que começaria a conhecer o trabalho literário de Silvestre a partir de outro livro que não fosse o adaptado para a minissérie da TV Globo/Brasil.

Pois bem, comecei lendo Vidas provisórias, em seguida li A felicidade é fácil e, por fim, Se eu fechar os olhos agora. Descobri que fiz, despropositadamente, o caminho inverso. Li o que o próprio autor chama de trilogia involuntária, de trás para frente. Não que haja uma obrigatoriedade na ordem das leituras, uma vez que cada uma possui vida autônoma. No entanto, o conjunto da obra nos dá uma dimensão maior das histórias que, de um modo especial, se interligam! Não vou contar o porquê! Leiam os livros! ;-)

Os títulos das obras lidas são, em si, um convite à reflexão. O que estaria por trás de algo denominado Vidas Provisórias? São nossas vidas provisórias? O que é e como é viver uma vida provisória? Quantas vidas provisórias vivemos do nascer ao morrer? Esses elementos me tocaram profundamente, porque eu, viajante errante desde o ano de 2006, em busca de raízes e de um lugar para chamar de meu, tenho uma vida provisória. Não apenas uma vida: vivo várias e ambas são provisórias.  

O segundo: A Felicidade é Fácil. Outro título repleto de simbologias, de imagens, de metáforas...É fácil? Para quem? De que maneira? Se é fácil, por que complicamos e por que ela nos parece tão difícil, dura, complexa? É uma questão de saber olhar pela janela, como disse Cecília Meireles?

E se eu fechar os olhos agora? O que deixarei de ver? O que verei com os olhos da alma que se abrem quando os olhos, órgãos, se fecham? O que significa fechar os olhos para aqueles que nunca os abriram? Fechar os olhos é escuridão ou lampejo de cores, de luzes e de vida, que estão cravadas na nossa memória?

Essas foram minhas indagações nos momentos em que olhei para os títulos. Fiquei literalmente grudado às narrativas, à fluidez do textos, à linguagem repleta de nuances, de conhecimento de mundo. As entrelinhas mostram outros mundos, que vão da política, às artes, com uma destreza plena de quem nasceu para conviver com a palavra. 

Cada qual com sua trama, sua estrutura narrativa, sua voz narrativa, permite-nos uma viagem no tempo e no interior das nossas mais sublimes patifarias, mesquinharias, virtudes...

E se eu fosse um daqueles personagens? Saberia eu conceber que a felicidade é fácil? Talvez eu precisasse me perguntar: o que acontecerá se eu fechar meus olhos agora? Fechar! Esse fechar que pode ser voluntário ou involuntário, mas que nos dá a dimensão de que tudo é provisório. 

Para os que temem encontrar uma narrativa jornalística, posso afirmar que se trata de literatura, de excelente qualidade e que as pinceladas sobre política e história não são enfadonhas, nem tentam ser didáticas. Fatalmente o leitor encontrará um tipo de texto que fala com o público sem pretensões, mas que emociona. Emoção que perpassava pela dor, amor, ódio, nojo, pelo sexo... pelo sonho... pela sordidez... pela ternura... pela amizade... pelos dilemas que movem a humanidade. 

Eu, que sempre reclamo da produção literária contemporânea do Brasil, rendi-me às obras de
Silvestre! Seus livros não são construídos para vender. Mas vendem porque são bem construídos. Talvez o melhor sintoma de qualidade sejam as traduções para outros idiomas, o que fortalece a ideia de que a boa literatura alcança qualquer canto deste vasto mundo.  Sente-se a organização, o planejamento, a seleção do vocabulário, a preocupação com as camadas de textos que velam e desvelam fatos. Os livros não têm lacunas. Tudo está bem enredado! Eu diria que as cores, os sons, os cheiros, as luzes são organizadamente bem pensadas. 

O leitor é encaminhado sutilmente para o interior das histórias narradas e passa a fazer parte delas. Pelo menos essa é a minha sensação. Talvez pelo meu modelo de vida errante, o livro Vidas provisórias tenha me tocado mais profundamente, o que não significa que os outros não tenham encantos. Muito pelo contrário. Cada um aponta em uma direção, mas... como na vida, em algum lugar, ou de algum modo, essas direções se cruzam e nos dão a dimensão do que é ser humano. Somos Paulos, Eduardos, Bárbaras, Ubiratans, Aparecidas, Anitas... Somos presente, passado e futuro. 


Ler os livros de Silvestre é permitir-se abrir as cortinas da própria alma. Através de seus personagens, repensamos nossas angústias, nossas escolhas, nossas humanidades e desumanidades. 

A felicidade é fácil, quando aprendemos a fechar os olhos agora e entendemos que nossa passagem por este planeta é provisória. Sejamos intensos, na dor e no amor. 

Recomendo fortemente que os livros acima apontados sejam lidos. Não levem em consideração minha modesta apresentação. Eles são muito mais que isso! São de fato literatura, arte! E literatura, para mim, exige sensação, muito mais que entendimento. Garanto que vocês estarão bem acompanhados por essas obras!  

A todos, meus abraços!
Wagner Dias.


quarta-feira, 5 de junho de 2019

DENTE-DE-LEÃO






De repente abro a minha janela e vejo, do lado de fora, um gramado verde salpicado de flores amarelas, pequenas, indefesas e vivas, e alegres. Eram como pequenos sóis  explodindo vida no chão. Depois de meses de neve, de frio e de monocromia, aquelas pepitas áureas me deixavam verdadeiramente feliz.
  
A visão foi terna e impactante. Viajei através do tempo e voltei à modesta casa mineira da rua professor João Batista Viegas, na barroca São João del Rei. Lá, as mesmas flores amarelas existiam. Minhas lembranças, no entanto, me diziam que na minha terra elas eram mais escassas: uma ou duas, grudadas nas laterais da casa, presas ao chapisco da parede. Pequenas explosões solares tentando dar cor ao cinza monocromático do cimento.

Então, comecei a pensar: independentemente de uma localização geográfica, seja aqui ou acolá, as pequenas flores amarelas de dente-de-leão eram meus sóis. Mas por que destacar logo as flores de dente-de-leão? Por que não falar das tulipas que eclodem em festa de cores durante a primavera, e que eu fotografara há alguns dias? Não seriam elas inspirações mais nobres para uma construção escrita? Seria mais interessante falar das tulipas que, na minha modesta experiência de vida, eram flores misteriosas. No entanto, meus olhos miraram as flores amarelas. Um destaque inesperado a elas, simples, e, por muitos, consideradas como ervas daninhas.

Cheguei a lamentar ao ver um vizinho passar sobre elas o cortador de gramas, dissolvendo-as em um pó inerte, na tentativa de garantir o que, para ele, era a beleza verde do gramado. Eu, particularmente, achava mais bonito aquele céu de chão verde salpicado de estrelas amarelas! Combinavam tanto com a paisagem! Eram ternas e sofisticadas ali, de onde o inverno roubara as cores. Eu não tive coragem de aparar aquelas que surgiram no meu jardim. Quero-as ali, diante da minha janela, junto do mato, junto de outras ervas, de outras flores. Parte o coração a ideia de removê-las, impedindo-as de viver para permitir o florescer daquelas que recebem a nobre definição  de flores autênticas.  

Mas que direito eu ou qualquer pessoa tem de remover a beleza simples em nome da beleza dita rara? Não são ambas belezas? Não podem se complementar? Não podem viver juntas? Não podem estabelecer vínculos de amizades? Não podem tomar um chá das cinco como vizinhas amigas? Não podem fazer juntas fofocas sobre os donos dos jardins? Não podem compartilhar o medo comum do inverno?

Talvez pensem que sejam raras! Não! Talvez inexista entre elas o conceito de raro, de belo, de valor… Devem pensar que nasceram no mesmo solo, que estão ambas enraizadas, que dependem da rega frequente, da chuva, do adubo… Flores! Por que privar uma do milagre de viver para destacar a outra? 

Talvez, no mundo das flores, não haja a noção de diferença. É possível que flores, consideradas raras, se entristeçam ao ver suas amigas, apelidadas de flores do mato, arrancadas brutalmente, despedaçadas e deixando de respirar, de viver, ficando ali, caídas, num canto dos jardins, destinadas ao lixo. 

Os homens, contrariando a natureza, deixaram-se acostumar com a dor do outro. Não se importam mais com seus semelhantes, agora tratados como ervas daninhas, que choram de fome na casa ao lado. Fatalmente, não se importarão quando essas ervas forem  retiradas de seus vasos rachados e descartadas no lixo da sociedade.  

Mas foram elas, as simples flores amarelas, que me encantaram. E elas se despedem depressa. Sem a necessidade atroz da selvageria da morte pelas mãos do homem. Assim como os humanos que também se despedem rapidamente da vida. Vida deveras efêmera e desperdiçada. Elas, as flores amarelas,  envelhecem e viram pompons algodoados, leves, decorando a ponta de caules flexíveis que balançam sob o poder do sopro do vento. Às vezes eu me sinto assim: um caule que não sabe se pende para este ou aquele lado, se quer raízes, ou se quer voo.

Talvez, conscientes da maldade humana, as flores amarelas de dente-de-leão envelheçam depressa para se tornarem leves e poderem  voar em liberdade, escondendo-se em outros jardins: nos mais escondidos, nos mais modestos, nas beiras de estradas, onde estariam livres do julgamento estético do homem. 

Aqui, descubro mais uma de minhas semelhanças com as amarelas flores: também envelheci depressa. Virei adulto ainda quando menino por aspirar ao voo da liberdade.
  
Eu, quando criança, arranquei aqueles caules  que portavam uma bola algodoada na ponta. E eu soprava… Achava bonita aquela nuvem branca planando em busca de  chão seguro. Na minha inocência infantil, aquilo não era atroz. Eu não as queria matar, não pensava na morte, mas pensava na alegria que me provocava ver aqueles flocos brancos voando. Metáfora da minha própria e tão sonhada viagem. Naquele tempo, eu não sabia que eram sementes. Eu também não sabia que um dia escreveria sobre a segregação por que passam as flores simples diante das chamadas flores raras. Eu jamais pensei que até nos jardins a desigualdade pudesse se manifestar, numa contestação infame à criação divina que nos presenteou com flores, sem as categorizar. Apenas flores! Seria o suficiente! A natureza nos deu flores e demos a elas o desprezo, a seleção que não é natural. Ganhamos a vida livre e criamos a desigualdade.

Hoje, não tenho mais a coragem da infância para arrancar os caules decorados com pompons brancos  que aguardam o sopro. Agora, torço para que o vento as sopre e as salve das pás, tesouras de jardinagem, cortadores de grama… Torço para que possam viajar em paz e encontrar locais onde se sintam seguras e possam completar seus ciclos.

Acho que desejo a elas o que desejo a mim mesmo. Conseguir criar raízes em um lugar seguro, sem medo de estar diante do meu semelhante, poder fixar-me e ser feliz onde tulipas, rosas, hortênsias, gerânios e dentes-de-leão vivam em igualdade, dividindo as gotas de chuva e vibrando, unidas, pelas sementes que, guerreiras, germinam. Talvez este mundo ideal esteja vivo na minha mente, nos meus textos, nas minhas fotos, nos livros que leio, na arte, na música… no sorriso das crianças.

Paradoxalmente, a incerteza em mim personificada, presenteia-me com a louca convicção de que eu sou uma daquelas flores amarelas de dente-de-leão.



Wagner Dias